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Transplantes Renais – Tudo o que precisa de saber

No dia 20 de julho de 1969, o homem pousava pela primeira vez na Lua. Em Portugal, no Hospital Universitário de Coimbra fazia-se também história num bloco operatório demasiado quente, pelas mãos do cirurgião Linhares Furtado, responsável pelo primeiro transplante de rim de que há registo no nosso país.
Cinquenta e dois anos depois destes acontecimentos marcantes, a medicina evoluiu de uma forma notável mas, há algo que não mudou: o transplante continua a ser um procedimento complexo, que salva vidas e que implica uma grande dose de altruísmo – falamos da doação em vida mas, também na situação de dador falecido e na generosidade da família em luto.

Pela sua complexidade e mistura de sentimentos esta continua a ser uma área envolta em mitos e dúvidas que vamos tentar esclarecer. Quem pode ser dador e quem pode receber um órgão? Que órgãos podem ser transplantados? Quais os riscos e cuidados a ter após um transplante? Qual o panorama da transplantação em Portugal? Vamos responder a estas e outras perguntas com a ajuda de quem sabe: Susana Sampaio, nefrologista e presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) e Marta Campos, coordenadora da Associação Portuguesa de Insuficientes Renais (APIR).

Transplante – o que é e porque é necessário

Comecemos pela sua definição: o transplante é um procedimento cirúrgico de substituição de um órgão ou tecido que apresenta lesões irreversíveis por outro de forma a recuperar determinadas funções e ganhar qualidade de vida. Os órgãos recebidos podem ter origem num dador falecido ou serem doados em vida. A legislação portuguesa estabelece que todas as pessoas são consideradas potenciais dadores, exceto se expressarem oposição à dádiva no Registo Nacional de Não Dadores (RENNDA). Assim, todos os cidadãos que não estejam inscritos no RENNDA são potenciais dadores após a sua morte, independentemente da idade. Por outro lado, para ser dador em vida é necessário ter mais 18 anos e ser saudável.
O que determina a possibilidade de os órgãos serem transplantados é a qualidade e funcionalidade dos mesmos, sendo também sempre verificado se o dador não é portador de nenhuma doença transmissível pelo órgão ou tecidos que inviabilize o procedimento.
Por outro lado, pode ser recetor de órgãos o doente que, segundo um relatório médico, sofra de uma patologia irreversível num determinado órgão para a qual o transplante é a única solução possível para evitar a morte ou melhorar a qualidade de vida. i
É possível transplantar rins, fígado, coração, pâncreas, pulmões e intestino. Para além destes órgãos, também é possível proceder à colheita de ossos, tendões e outras estruturas, tais como córneas, válvulas cardíacas, vasos sanguíneos e pele, que podem ser preservados e posteriormente transplantados.
Quando existe a disponibilidade de um órgão, o recetor é contactado para que num curto espaço de tempo seja realizado o procedimento. Antes do transplante, é testada a compatibilidade entre dador e recetor mas, dado que o órgão não lhe pertence o doente fica sujeito à toma de medicamentos imunossupressores (fármacos que atuam no sistema imunológico para evitar a rejeição), à exceção dos transplantes de medula óssea. Após a intervenção e alta é necessário manter vigilância regular nas consultas de acompanhamento de pós-transplante. Se o organismo rejeitar o órgão, o doente poderá voltar a integrar a lista de espera.

Transplante de rim – o primeiro e o mais frequente

Além de ter sido o primeiro órgão a ser transplantado, o transplante de rim é aquele que se realiza com maior frequência em Portugal. Em 2020 foram realizados 393 transplantes renais e 193 transplantes de fígado, o segundo órgão mais transplantado nos hospitais portugueses. Este número inferior quando comparado com os anos anteriores explica-se pelo período excecional que vivemos de pandemia.
No entanto, não nos podemos esquecer que a prevalência da doença renal crónica (DRC) no nosso país é muito elevada quando comparada com outros países europeus ou do mundo. Em Portugal, cerca de 12 mil doentes realizam tratamento substitutivo da função renal.

A DRC, também conhecida como insuficiência renal, consiste na perda progressiva da função renal ao longo do tempo, ocorrendo quando uma doença ou condição afeta a função dos rins. Estima-se que em Portugal uma em cada três pessoas tenha risco acrescido de desenvolver DRC inerente a fatores de risco tais como diabetes, hipertensão e obesidade. Esta doença evolui ao longo de vários estadios, sendo o estadio 5, o mais grave quando a função renal é inferior a 15mL/minuto sendo necessário recorrer a uma técnica de substituição da função renal, como diálise ou transplante renal.

Viver com DRC e o “milagre” do transplante

O diagnóstico de uma doença crónica pode ser avassalador, obrigando a uma reorganização de prioridades e da forma de pensar a própria vida. As pessoas que tenham sido recentemente diagnosticadas com insuficiência renal crónica devem “estabelecer um contacto próximo com a equipa de saúde e manter uma relação de parceria”, aconselha Marta Campos, coordenadora APIR. “Os doentes devem sentir-se à vontade para colocar todas as questões, as pertinentes e até as aparentemente irrelevantes”, porque “um doente informado é um doente mais bem tratado”. A coordenadora da APIR deixa outros conselhos, nomeadamente que os doentes com este diagnóstico “devem procurar o apoio das associações de doentes, tentar falar com outras pessoas na mesma situação e tentar não se isolar. A partilha de experiências é muito importante e pode fazer a diferença na fase de adaptação à doença”.

A DRC é uma doença com impacto na qualidade de vida do doente, na sua saúde e bem-estar, e na do seu cuidador, uma vez que o doente pode ter sintomas, que vão desde o cansaço, náuseas, falta de apetite, alterações de humor e do sono, até problemas de pele e ósseos. Também a anemia é uma consequência possível desta patologia. De acordo com Marta Campos, “estas questões interferem com o dia a dia das pessoas e podem limitá-las nas suas interações familiares e sociais, na sua capacidade profissional e até mesmo nos momentos de lazer e na possibilidade de viajar ou fazer férias fora de casa”.

Na opinião da coordenadora da APIR, em termos gerais, “o transplante é a melhor opção de tratamento para a DRC”, ainda que não possa ser considerado como uma cura e obrigue à toma de medicação imunossupressora, que pode trazer outros efeitos. Apresenta-se como um tratamento vantajoso na medida em que liberta o doente de tratamentos constantes, como acontece no caso da diálise e hemodiálise, e restitui muitas das funções renais que a diálise não substitui. “Quando é bem-sucedido, o transplante renal proporciona uma vida potencialmente mais longa e mais saudável, livre da diálise e das restrições alimentares, mas o novo rim traz consigo um conjunto de cuidados a ter em conta de forma permanente”, ressalva a coordenadora da APIR.
Atualmente, o número de doentes em lista de espera para transplante renal aproxima-se das 2 000 pessoas, sendo “um valor relativamente estável nos últimos anos”, indica Susana Sampaio, presidente SPT.
Apesar do grande aumento de qualidade de vida que o transplante traz à vida de quem sofre de doença renal crónica, há riscos que precisam de ser ponderados e variam em função do tipo de transplante, geralmente, “devido à imunossupressão necessária para evitar a rejeição do órgão”, explica Susana Sampaio. “Os maiores riscos são as infeções e as neoplasias (ou seja, a existência de uma doença maligna). É por isso fundamental que o doente transplantado esteja atento “a sintomas ou sinais que surjam e comunicar precocemente ao médico assistente para que não se deixe avançar para uma fase em que seja tarde demais”, sublinha a especialista.
A presidente da SPT acrescenta que outro aspeto a acautelar é “o risco cardiovascular que no primeiro ano de transplante está aumentado, sendo importante controlar a hipertensão, a obesidade e os valores elevados de colesterol”. Ter uma “vida normal” é possível mas é necessário cumprir os horários e as doses da medicação, que será para toda a vida, conciliando com uma “vida saudável que inclui a alimentação e o exercício físico regular sempre ajustado à condição clínica”.

Liderança na área do transplante

O país “tem muito que se orgulhar”, refere Susana Sampaio, já que continua na linha da frente mundial neste tipo de procedimentos e porque nos últimos anos se assistiu a um aumento dos transplantes de uma forma geral. “Estamos na linha da frente no que concerne à colheita e mesmo ao número de transplantes renais e hepáticos efetuados”.
Em 2020, o número de órgãos colhidos para transplante caiu 21%, o equivalente a menos 197 órgãos face a 2019, uma redução com maior impacto nos transplantes de fígado e rim, de acordo com dados divulgados pelo IPST, através da Coordenação Nacional da Transplantação. Ainda assim, verificou-se um aumento da taxa de utilização de órgãos, de 84% para 87%.ii
Apesar disso, durante a pandemia de COVID-19, Portugal conseguiu ser o quarto país, a nível mundial, no número de dadores por milhão de habitante. “Quando nos comparamos com países que possuem maior potencial económico, o facto de conseguirmos estar no topo em relação à doação e mesmo na transplantação, permite-nos saudar as nossas equipas clínicas que, com o seu espírito de dedicação, alcançaram também resultados clínicos e de sobrevivência fantásticos”, refere a presidente da SPT.
De acordo com Susana Sampaio, a pandemia teve impacto na redução no número de transplantes, resultado da suspensão da atividade não urgente nos períodos mais críticos da pandemia, provocando não só um atraso na realização de exames e consultas necessárias ao estudo dos potenciais recetores para transplante, como também na sua inclusão em Lista Ativa. Verificou-se ainda um “atraso no estudo de potenciais dadores vivos e na realização deste tipo de cirurgias”. Por outro lado, houve necessidade de adaptação da atividade de seguimento dos doentes transplantados com implementação de consultas não presenciais, criação de circuitos próprios no interior dos hospitais e de fornecimento de medicação imunossupressora.
E mesmo com todas as dificuldades sentidas, Susana Sampaio conclui que “as Unidades de Transplantação e os seus profissionais, assim como os serviços hospitalares conseguiram num curto período de tempo adaptar-se e dar resposta aos desafios apresentados”.

Mais informação sobre transplantes e DRC:

http://ipst.pt/index.php/pt/
http://www.spt.pt/site/desktop/
https://www.apir.org.pt/

i https://www.sns24.gov.pt/tema/dadiva-e-transplante/transplante-de-orgaos/
ii https://www.lusa.pt/article/2021-04-05/31118049/covid-19-doa%C3%A7%C3%A3o-de-%C3%B3rg%C3%A3os-de-dador-falecido-e-n%C3%BAmero-de-transplantes-ca%C3%ADram-em-2020

 

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Dra. Susana Sampaio

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Dra. Marta Campos

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